No dia 26 de Agosto, celebramos o Dia Internacional da Igualdade Feminina. A data é uma oportunidade relevante para que possamos lembrar e comemorar diversas conquistas de lutas sociais históricas das mulheres, mas, além disso, também refletir sobre em que pé estamos em relação à efetiva garantia de tais direitos.
O ano de 2023 tem sido histórico para a luta por maior equidade de gênero em múltiplas frentes:
- Na política, mais diversidade: 2023 foi um ano de avanços relativos na representação de mulheres, somando 91 candidatas eleitas, com destaque para a inédita posse de duas mulheres trans: Erika Hilton (Psol-SP) e Duda Salabert (PDT-MG). A maior representatividade das mulheres trans na Câmara é fundamental não apenas para que projetos de lei pelos direitos das mulheres transexuais sejam criados e promulgados. A ocupação delas em espaços de poder também significa a pressão necessária para o efetivo exercício dos seus direitos previstos. A despeito dos avanços, segundo dados levantados pela FGV Direito Rio em parceria com a Democracy Report International (DRI) para o projeto Mídia e Democracia, 2023 é o ano com maior número de PLs ameaçadoras aos direitos das pessoas trans. Entre os 20 projetos antitrans identificados apenas neste ano, 2 visam restringir a participação de mulheres trans nas competições esportivas femininas, uma tenta proibir que estas mulheres usem banheiros femininos e 10 minam a inclusão delas em espaços de educação na tentativa de proibir o uso de linguagem neutra em instituições de ensino, materiais educativos e equipamentos culturais. As ameaças também têm se dado no sentido de impedir que essas mulheres tenham acesso à cirurgia de transgenitalização e demais procedimentos de readequação sexual dentro do Processo Transexualizador hoje garantidos pelo SUS, direitos que já são de difícil acesso. Um exemplo disso é o caso da brasileira Luiza Melinho que, impedida de fazer seu processo de readequação sexual, teve seu caso levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) este ano. A denúncia ocorreu devido às dificuldades impostas pelas instituições de saúde do país em garantir que tais mulheres possam efetivamente recorrer aos procedimentos previstos. O pacote com 25 ações para o combate à desigualdade de gênero lançado por Lula em 2023 é um exemplo de atuação que tem o direito das mulheres trans como ponto cego e que se beneficiaria do diálogo com tais representantes.
- Na educação, números mais promissores: Mulheres nordestinas de até 21 anos foram a maioria dos inscritos no Sisu de 2023. A conquista é fruto e deriva de processo que vem sendo gerado há cerca de 3 décadas, quando mulheres começam a ultrapassar a quantidade de homens nas instituições de ensino, segundo o IBGE. Além disso, dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e do Ministério da Educação (MEC) já revelaram, em um levantamento de 2020, que as mulheres constituem a maioria no Ensino Superior brasileiro, com 25% das mulheres do país matriculadas no em universidades, em comparação com 18% dos homens. Esse dado se reflete no levantamento do IBGE, que aponta mulheres como mão de obra mais qualificada no país, embora isso não garanta a elas melhores condições de trabalho, visto que o último levantamento PNAD indicou homens brancos como maioria em cargos elevados, sendo também os que possuem os melhores salários em comparação a mulheres nas mesmas funções, mesmo após melhora desse cenário em 2023. Se tratando de mulheres negras, os números ainda têm muito o que melhorar. Independente de escolaridade, os seus salários não chegam a 60% do que ganham homens brancos, além de serem ultrapassadas por mulheres brancas no número de trabalhadoras com carteira assinada, também segundo a PNAD. Os resultados da maior qualificação das mulheres no mercado de trabalho são altamente desejados no atual cenário onde elas ultrapassam homens apenas nos cargos de trabalho doméstico, além de serviços temporários no setor público sem carteira assinada. (Gênero e Número, 2023)
- No mercado de trabalho, mais legislação: Para o combate efetivo da desigualdade de gênero no mercado de trabalho, brasileiras em 2023 conquistaram a promulgação da lei 14.611/2023, que está em vigor desde 4 de julho e passa a assegurar a igualdade salarial e critérios de remuneração entre trabalhadoras e trabalhadores, promovendo também a fiscalização pelo MPT contra a discriminação e a simplificação dos processos legais. A lei também alterou as multas para empresas que não pagam salários iguais a homens e mulheres na mesma função, estabelecendo um valor dez vezes maior do novo salário devido à trabalhadora ou trabalhador discriminado, conforme o artigo 510 da CLT e determina a criação de um banco público de dados para publicação de relatórios de transparência das empresas. A legislação também leva em conta as repercussões que diferentes mulheres podem vir a enfrentar no ambiente de trabalho. Por essa razão, ela determina que se houver discriminação que não apenas envolva o gênero, mas também raça, etnia, origem ou idade, a pessoa discriminada tem o direito de mover uma ação judicial visando a compensação por danos morais, considerando as particularidades do caso específico. Será também a responsabilidade de empresas que empreguem 100 ou mais trabalhadores divulgar relatórios semestrais de transparência salarial. A exigência visa possibilitar uma comparação objetiva onde seja possível identificar também a proporção de cargos executivos, de gerência e de supervisão ocupados por homens e mulheres, bem como informações sobre potenciais disparidades relacionadas à raça, etnia, nacionalidade e idade. As medidas irão contribuir para que o aumento de mulheres em cargos de liderança aconteça de maneira isonômica, visto que tal crescimento vem sendo observado principalmente de 2022 para cá, com cerca de 17% das mulheres ocupando cargos de alta liderança, Segundo o Observatório de Pessoal do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos.
Apesar de tais avanços, desafios significativos ainda se impõem. O direito mais fundamental, o direito a uma vida digna e livre de violência, ainda não foi garantido plenamente e afeta, principalmente, mulheres pretas, pardas e economicamente vulneráveis no Brasil (Gênero e Número, 2023). Além disso, visualizamos um aumento considerável da violência contra mulheres, em todas as suas formas, de acordo com os dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2023). O acesso à formação educacional, tampouco tem sido refletido na contratação de mulheres para posição de liderança ou no seu avanço em carreiras acadêmicas e científicas, como demonstram os dados do Grupo de Estudos Multidisciplinar em Ações Afirmativas do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (GEMAA-IESP, 2023).
A falta de inserção devida no mercado de trabalho, a "economia do cuidado" que terceiriza para mulheres a função do cuidado de suas próprias casas, de parentes, de familiares, ou de casas dos outros – exploração de trabalho invisível, que Falquet (2017) caracteriza como parte crucial das cadeias de "cuidado" globais, responsáveis por amortecer as próprias crises do capitalismo, que produz o fenômeno da "feminização da pobreza".
Refletir sobre a persistência da desigualdade é crucial para debatermos como avançar e alcançar a igualdade feminina. Tal esforço exige um comprometimento genuíno com a pesquisa, a colaboração interdisciplinar e a participação ativa em diálogos que fomentem uma sociedade mais inclusiva e justa. A igualdade de gênero, assim, deve ser entendida não como um fim em si mesma, mas como um processo contínuo e dinâmico, intrinsecamente ligado aos objetivos mais amplos de justiça social, desenvolvimento sustentável e democracia participativa.
Autoria: Yasmin Curzi, coordenadora do Programa de Diversidade e Inclusão da FGV Direito Rio, Giullia Thomaz, Victor Giusti e Lorena Abbas.